Em 1996 traduzi para o inglês o roteiro que Ruy Guerra fez para seu filme Estorvo, adaptado do livro do Chico Buarque. O filme em si é curioso em vários aspectos, começando pela sua estranheza geográfica: foi filmado no Rio, na serra de Petrópolis e em Havana (Cuba), mas a história segue como se fosse um lugar só, um lugar-nenhum, na verdade, onde se fala português, espanhol e portunhol.
Mas o roteiro que recebi já trouxe uma grande curiosidade: Ruy havia decidido manter a “voz” do personagem na primeira pessoa, como no livro, então os nomes dos personagens nas falas apareciam “EU”, “MINHA IRMÔ, “MINHA SOBRINHA” etc. Alguns cabeçalhos revelavam que estávamos em lugares como “EXT. CASA DA MINHA IRMà – DIA”, e as rubricas descreviam ações como “Eu olho para Minha Irmã.”
Não tenho mais o roteiro original (na época ainda recebia roteiros impressos e entregava as traduções encadernadas direitinho, junto com o arquivo em disquete), mas no pequeno trecho do roteiro em inglês a seguir dá para ver algumas destas curiosidades.
Nunca mais soube de um roteiro de cinema na primeira pessoa.
L’EXACTITUDE N’EST PAS LA VÉRITÉ
A semana em que levei Michael Chekhov para visitar Henri Matisse PARTE 3 de 3 (a continuação de Parte 1 e Parte 2)
Michael Chekhov traz da Antroposofia a noção do Ego Superior para explicar este acordar do nosso ser criativo através de uma conexão verdadeira com um objeto, imagem ou outro elemento do mundo externo (ou até imaginário), e a atividade de sintetizar esta experiência no presente momento. Matisse também reconhece que esta inspiração artística vem de algum lugar no alto, algo espiritual que se tornou tangível:
“A maioria de pintores precisa de contato direto com os objetos para sentir que eles existem (…) Eles buscam uma luz exterior para se iluminarem por dentro. Enquanto o artista ou poeta possui uma luz interior que transforma os objetos e faz deles um novo mundo – sensível, organizado, um mundo vivo que em si é um sinal infalível do Divino, um reflexo do Divino.”[1]
Palavras como “superior” e “divino” poderiam sugerir um certo distanciamento do nosso ser criativo, como se estivesse “lá fora” de alguma forma, de repente até fora do nosso alcance. Mas Matisse e Chekhov nos lembram que se encontramos a atividade certa como artistas, a nossa inspiração será viva dentro de nós. O grande amigo e rival do Matisse, Pablo Picasso, disse: “Inspiração existe sim, mas precisa te encontrar trabalhando.” Continue lendo “H.MATISSE/M.CHEKHOV (Parte 3 de 3)”
(O Conselheiro)
Dir: William Wyler
Com: John Barrymore, Bebe Daniels
Uma das maiores atuações do genial Barrymore, como advogado que sobe na vida, mas começa a questionar seu próprio sucesso, quando é traído pela mulher.
(filme INSPIRAÇÃO)
L’EXACTITUDE N’EST PAS LA VÉRITÉ
A semana em que levei Michael Chekhov para visitar Henri Matisse PARTE 2 de 3 (continuação de Parte 1)
Uma coisa que Matisse e Chekhov tiveram em comum era que, ao se estudarem com muita coragem e honestidade, cada um descobriu que, para o processo criativo poder acontecer, o artista precisa permitir que algo do mundo externo o transforme no seu interior. Pode ser um objeto, uma pessoa, uma paisagem, uma imagem, uma atmosfera. E é essencialmente esta experiência de transformação que expressamos enquanto artistas. Tem uma frase maravilhosa do Goethe que descreve isto perfeitamente, “Cada novo objeto, bem contemplado, abre um novo órgão dentro de mim.”
Ou, nas palavras do Matisse: “Criar é expressar o que temos dentro de nós. Todo esforço autêntico de criação é interior. Então precisamos alimentar nosso sentimento, e isso é feito com ajuda de elementos que tiramos do mundo exterior. É aqui que entra o trabalho através do qual o artista incorpora, assimila aos poucos o mundo exterior, até que o objeto que ele desenha se torne uma parte dele mesmo, até que ele o tenha dentro de si e possa projetá-lo na tela como sua própria criação..”[1]
E: “Não é uma mais uma questão de trazer as lembranças do mar, do campo etc. É necessário fazer uma construção. É a vibração do indivíduo que importa, em vez do objeto que produziu esta emoção. Não transmitimos a matéria, mas a emoção humana, uma certa elevação do espírito que pode provir de qualquer visão.”[2]Continue lendo “H.MATISSE/M.CHEKHOV (Parte 2 de 3)”
L’EXACTITUDE N’EST PAS LA VÉRITÉ[1]
A semana em que levei Michael Chekhov para visitar Henri Matisse PARTE 1 de 3
Tive a grande sorte de crescer em uma família que amava e respeitava livros, arte, música e o teatro, e conforme fui crescendo, descobri que meus interesses moravam em todas estas direções. Também herdei uma paixão especial por Henri Matisse e como visitávamos duas ou três vezes ao ano um pequeno vilarejo nas montanhas perto de Nice, ele se tornou uma pessoa bem familiar da região. Nos anos 70 o Musée Matisse era um lugar meio improvisado, com peças dos seus móveis espalhadas pelas salas e dezenas de croquis apresentados de forma aleatória, com um certo charme da época pré-curadoria profissional. O museu fica somente 100m abaixo do Le Régina, o velho hotel em Cimiez onde Matisse passou seus últimos anos, então não era difícil imaginar sua presença idosa caminhando vagarosamente de um cômodo ao outro.
Mais tarde, como jovem adulto, estudei desenho e pintura, e Matisse foi um guia e inspiração constante, não só sua linda arte mas seu incentivo suave – mas firme – de trabalhar todos os dias. Eu continuava passando muito tempo perto de Nice, e mais perto ainda de Vence, o local da grande obra dos últimos anos de Matisse, a extraordinária Chapelle du Rosaire, que continuo visitando sempre que eu puder. Aliás, sempre tenho saído do meu caminho para visitar as obras de Matisse, tenho lido sobre ele e quando possível viajado para exposições. Eu simplesmente sinto uma conexão pessoal muito forte com sua maneira de expressar a vida; Matisse tem me acompanhado desde que me entendo por gente. Continue lendo “H.MATISSE/M.CHEKHOV (Parte 1 de 3)”
Cheguei no Brasil em 1987 com a missão de pesquisar um guia de turismo para uma editora londrina. O país havia sido dividido entre três pesquisadores e felizmente fiquei com Minas, Rio e Espírito Santo. Comecei por Minas, viajando de ônibus pelo o sudoeste do estado, subindo de Poças de Caldas e Alfenas em direção ao Triângulo Mineiro e, depois de algumas semanas, rumo ao norte via Patos de Minas e Pirapora. Para um recém-chegado da Europa era tudo fascinante e muitas vezes misterioso, especialmente porque meu português estava só começando a engatinhar.
Algo que todo viajante leva consigo quando sai para o mundo é o anonimato: vai para lugares que ainda não conhece, mas o desconhecimento é mútuo, o que pode trazer um grande senso de liberdade. No meu caso, depois de três ou quatro semanas andando pelos cantos mais remotos do interior de Minas, o meu senso de anonimato era absoluto e eu estava curtindo bastante.
Mas em Pirapora aconteceu algo muito estranho. Ao desembarcar do ônibus fui andando até um hotel modesto onde fui recebido por um rapaz e decidi descansar um pouco no quarto. Quando saí para dar uma primeira volta na cidade, a noite estava caindo e o pôr do sol me chamou para a beira do majestoso Rio São Francisco. Continue lendo “O MISTÉRIO DE PIRAPORA”
Tem filmes que são muito dificeis, cansativos e frustrantes de fazer… e outros que são pura diversão, como o pequeno doc-carioca DIA DE FEIRA , que filmei em 2005. É um registro de um daqueles fenômenos que surgem inexplicavelmente no Rio de Janeiro de vez em quando, ondas tão distintas quanto o verão da lata ou a mais recentemente febre dos Yogoberries. São manifestações sociais/comerciais/culturais/artísticas que surgem do nada, viram moda por um tempo e justamente quando você está se acostumando com a nova realidade e começando a curtir, somem novamente como uma miragem.
O sambista Moacyr Luz morava em Muda, na Tijuca, vizinho do seu amigo Aldir Blanc na Rua Garibaldi, onde nas sextas-feiras tem uma feira. Moacyr um dia sentou por ali na feira, começou a bater papo com os feirantes e daqui a pouco um amigo ou outro começou a se juntar. Logo depois conseguiram uma mesa de feirante para ficarem mais acomodados…e aos poucos o encontro foi crescendo. E crescendo. Logo, logo dezenas de amigos de várias partes do Rio começaram a se reunir toda sexta de manhã na feira da Rua Garibaldi, para comer churrasco, ostras, camarão e outra iguarias – e beber, claro – enquanto resolviam os problemas do mundo com papos infinitos. Continue lendo “DIA DE FEIRA, com Moacyr Luz (2005)”
Conheci Hector Babenco em 2001 quando ele estava trabalhando no roteiro de Carandiru e, a partir dali, trabalhamos juntos em todos os seus filmes. Hector se envolvia em todos os aspectos da produção e como falava bem inglês sempre participava ativamente dos desafios de tradução dos seus roteiros ou da legendagem – que no caso de Carandiru, aliás, não eram poucos. A linguagem musical das falas do detentos precisava de atenção especial e em 2002, quando chegou a hora de prepararmos as legendas, acabei passando três dias em SP com Hector e o veterano montador Mauro Alice, criando cuidadosamente os diálogos em inglês.
[Durante aquela visita, outro grande presente eram os almoços com Mauro, porque ele contava histórias do seu mestre austríaco Oswald Hafenrichter, de quem aprendeu a editar nos anos 50. Depois da guerra, Hafenrichter havia sido chamado para Londres para trabalhar com Alexander Korda e Carol Reid, e chegou a ser nomeado para um Oscar por seu trabalho primoroso em The Third Man, com Orson Welles. Em Londres ele conheceu o brasileiro Alberto Cavalcanti, que em 1949 estava voltando para o Brasil para montar o estúdio Vera Cruz. Em 1950 Cavalcanti convenceu o Hafenrichter a passar uma temporada no estúdio e foi assim que Mauro teve a sorte de receber uma formação tão ilustre – e rigoroso.]
Outro trabalho importante que fiz para Babenco foi seu último filme, Meu Amigo Hindu. Importante porque o roteiro acabou sendo filmado em inglês, então a tradução do roteiro servia tanto para os ensaios quanto como shooting script durante as filmagens. No período dos ensaios foi necessário manter atualizada a versão em inglês, um processo complexo ao longo de meses de trocas para realizar, a cada três ou quatro dias, as sempre urgentes mudanças .
A partir de 2010, Hector acompanhou de longe a criação e crescimento da Michael Chekhov Brasil, então um dia durante uma conversa sobre o roteiro disse: “Vou te dar um papel no filme, tá bom?” Acabei fazendo uma ponta como o personagem Ivan, um velho judeu amigo do protagonista (Willem Dafoe).
Pelo seu ritmo de produção, seria provavelmente por estes dias que eu receberia um telefonema do Hector com alguma demanda para seu novo roteiro. Mas Hector faleceu exatamente um ano atrás, não muito tempo depois do lançamento de Meu Amigo Hindu. Ele tinha 70 anos de idade.
Sentindo muita falta agora do telefonema que não virá mais.
Assisti ao genial Le boucher quando tinha 15 ou 16 anos no pequeno Film Club da minha escola no interior da Inglaterra. Foi organizado pelo professor de francês e portanto os últimos filmes do Truffaut, Malle e Chabrol sempre faziam parte da programação, embora todos em cópias bem precárias de Super-8. Eu nem sei onde ele conseguia os filmes, talvez em uma videoteca na cidade mais próxima. Inicialmente, o clube para mim era nada mais do que uma desculpa para matar alguma atividade esportiva, as quais eram absurdamente excessivas para meu gosto.
Chabrol me tocou de uma forma especial com La femme infidèle e Que la bête meure, mas foi Le boucher que acordou em mim a primeira consciência da construção artística de um filme, a subjetividade do diretor e do fotógrafo, as escolhas de estilo e outras ideias. E embora eu não tenha assistido a este filme recentemente (faz décadas), me lembro exatamente das cenas que eu estudava concentrado e que abriam a minha mente de adolescente para as possibilidades da linguagem de cinema: no final do filme o personagem do Jean Yanne chega uma última vez na sala de aula para encontrar a professora de Stéphane Audran, e segue uma sequência de uma extraordinária delicadeza e beleza, apesar da tragédia violenta se desenrolando.
Le boucher foi a minha primeira uma aula de cinema.
E para os nerds da fotografia: o filme tem um plano sequência maravilhoso que segue os personagens andando pelas ruas do vilarejo por quatro minutos (só seis anos depois a Steadycam chegaria para facilitar este tipo de plano).