L’EXACTITUDE N’EST PAS LA VÉRITÉ
A semana em que levei Michael Chekhov para visitar Henri Matisse
PARTE 3 de 3 (a continuação de Parte 1 e Parte 2)
Michael Chekhov traz da Antroposofia a noção do Ego Superior para explicar este acordar do nosso ser criativo através de uma conexão verdadeira com um objeto, imagem ou outro elemento do mundo externo (ou até imaginário), e a atividade de sintetizar esta experiência no presente momento. Matisse também reconhece que esta inspiração artística vem de algum lugar no alto, algo espiritual que se tornou tangível:
“A maioria de pintores precisa de contato direto com os objetos para sentir que eles existem (…) Eles buscam uma luz exterior para se iluminarem por dentro. Enquanto o artista ou poeta possui uma luz interior que transforma os objetos e faz deles um novo mundo – sensível, organizado, um mundo vivo que em si é um sinal infalível do Divino, um reflexo do Divino.”[1]
Palavras como “superior” e “divino” poderiam sugerir um certo distanciamento do nosso ser criativo, como se estivesse “lá fora” de alguma forma, de repente até fora do nosso alcance. Mas Matisse e Chekhov nos lembram que se encontramos a atividade certa como artistas, a nossa inspiração será viva dentro de nós. O grande amigo e rival do Matisse, Pablo Picasso, disse: “Inspiração existe sim, mas precisa te encontrar trabalhando.”
Chekhov fala de ter a inspiração sob nosso comando. Se um artista treina esta atividade de concentração – uma atividade divina, segundo, segundo Matisse -, ele terá sucesso em encontrar sua expressão artística e tornar o intangível tangível, o divino material.
Este momento de criação precisa ser descoberto do zero a cada vez, e é preciso encontrar coragem repetidamente, coragem para buscar e também para “sair do caminho”, para permitir esta inspiração superior a trabalhar através de nós.
“Cada vez que havia feito tudo que podia com meus dez dedos, algo vinha para completá-lo, que não dependia de mim, que vinha de outro lugar. Precisamos fazer tudo que podemos, e no momento em que está terminado alguma influência celestial vem e completa. Mas aquilo não lhe servirá para a próxima vez. Tenha confiança, anda, e ela virá no caminho. “[2]
Outra palavra que surge rapidamente em qualquer conversa com Matisse e Chekhov é “síntese”, algo somente possível quando o artista permite que esta “influência celestial” faça seu trabalho. Chekhov descreve nosso ser criativo como um “laboratório” vivo em qual “todas as nossas experiências pessoais, subjetivas, particulares, são alteradas, amalgamadas, resumidas, condensadas pela nossa sabedoria subconsciente e se tornam Arquétipos.”[3]
“Não é um desenho a síntese, a culminância de uma série de sensações que o cérebro tem retido, reunido, e que uma última sensação dispara? Tanto que executo o desenho quase com a sensibilidade de um médium. “[4]
Ambos são receosos de sucesso comercial e crítico e dos perigos de desviarmo-nos da nossa tarefa essencial enquanto artistas: de sermos mudados pelo nosso ambiente e expressarmos esta experiência. Chekhov frequentemente reprimia seus alunos por terem trocado sua força de vontade criativa por brilhantismo técnico, por terem perdido de vista seu ser artístico interior. Matisse tocou em temas semelhantes a respeito da jornada do artista ao longo do tempo e como a técnica deve simplesmente servir à nossa habilidade de nos expressar:
“Um artista deve possuir a Natureza. Ele deve se identificar com seu ritmo através de esforços que o levarão a adquirir mestria, graças a qual ele poderá mais tarde se expressar com sua própria língua.
O pintor futuro deve prever o que é útil para seu próprio desenvolvimento – desenho e até escultura – tudo que o permitirá se tornar um com a Natureza, se identificar com ela ao incorporar as coisas (…) que estimulam suas sensações. Creio que estudar desenho seja absolutamente essencial. Se o desenho vem da mente e a cor dos sentidos, é necessário desenhar para cultivar o espírito e ser capaz de conduzir cor pelos caminhos da mente. É isso que tenho vontade de gritar quando vejo o trabalho de jovens para quem pintar é apenas uma aventura, e portanto cujo único fim é a atenção de um marchand qualquer para o lançar no caminho de celebridade.
É só depois de anos de preparação que o jovem artista terá o direito de tocar nas cores – não na capacidade de um meio de descrição, mas na capacidade de um meio de expressão íntima. Então ele pode esperar que todas as imagens e até todos os símbolos que emprega possam ser o reflexo do seu amor pelas coisas, um reflexo em qual ele pode ter confiança, se ele for capaz de realizar sua educação até o fim com pureza e sem mentir para si mesmo. Assim ele usará as cores com discernimento.”[5]
Henri Matisse e Michael Chekhov trabalharam cada um incansavelmente como artistas e exploradores da experiência humana, desde a juventude até o final das suas vidas. Eu nunca encontrei nenhuma menção de Matisse ter entrado em contato com a Antroposofia, então este cruzamento tão extraordinário e preciso, representando a experiência comum do ato criativo, me parece ainda mais deslumbrante. É simplesmente o fruto da sua auto-observação corajosa e verdadeira.
Ambos estes homens enfrentaram grandes adversidades pessoais e atravessaram as violentas reviravoltas do seu tempo. Cada um embarcou em longas jornadas ao longo de sua vida, tanto no sentido literal quanto metafórico. É claro, Matisse era consideravelmente mais velho: até o nascimento de Chekhov em St. Petersburg em 1891, ele já havia recentemente deixado sua cidade natal no norte da França e estava começando sua vida como um talentoso estudante em Paris. Mas, por ordem do destino, estes grandes artistas faleceram em um intervalo de somente dez meses, um do outro, em 1954 e 1955, respectivamente.
“A responsabilidade permanente do criador perante ele mesmo e perante o mundo não é algo raso: ao ajudar o universo a se construir, o artista mantém sua própria dignidade.”[6]
uma crônica de Hugo Moss
Todas as citações em negrito são do livro Ecrits et propos sur l’art e traduzidas do francês pelo autor.
(c) 2017 Hugo Moss
Todos os direitos reservados
OBRAS DE MATISSE
Os marroquinos (1915-1916)
Natureza morta de Sevilha (c.1910-1911)
Banhistas num rio (1916-1917)
Interior em Nice (1919)
A Janela (1916)
Desenho sem título (1941)
BIBLIOGRAFIA
Michael Chekhov, On the Theatre and the Art of Acting. New York: The Working Arts Library, 2004 (4 CDs and booklet)
Henri Matisse, Ecrits et propos sur l’art, ed. Dominique Fourcade. Paris: Hermann, 1972.
[1] Citado em “Entretien avec Tériade”, L’Intransigeant, 19th, 20th and 27th October 1930
[2] Citado em Couturier, Marie-Alain. Se garder libre (Journal 1947-1954. Paris, Éditions du Cerf, 1962
[3] Chekhov, 2004; CD3
[4] Citado em Aragon, Louis. Henri Matisse, roman. Paris, Gallimard, 1971
[5] Carta a Henry Clifford, 1948
[6] Citado em Escholier, Raymond. Matisse, ce vivant. Paris, Pierre Tisné, 1954